quinta-feira, 9 de abril de 2009

CAVALEIRO DAS TREVAS -CRISE ECONÔMICA E A VIOLÊNCIA DOS HERÓIS






A década de 1970 legou aos EUA uma herança maldita: inflação, desemprego próximo do recorde histórico e criminalidade crescente. Legou também dois duros golpes no moral norte-americano: a humilhante derrotada no Vietnã e um presidente, Richard Nixon, que renuncia a seu mandato para escapar do impeachment . O retorno das tropas, aliás, inunda a rua de homens dependentes de drogas, extremamente violentos e mentalmente abalados pelos horrores da guerra. Que justamente nesta época os heróis tenham se tornado problemáticos e agressivos não surpreende ninguém;heróis violentos e sem caráter já tinha surgido em outro momento de abalo social e econômico, os anos 1940, na forma do film noir.
Em 1970, a inflação, que já era alta , 7%, bateria nos 13 pontos dez anos depois, impulsionada pelas crises do petróleo (em 1973 e 1979) que fizeram disparar o preço dos combustíveis , oque abalou a economia e elevou as taxas de desemprego. Somente o governo Reagan (1981-1989)iria recolocar as coisas nos eixos , ajustando a economia e elevando o moral do cidadão - inicia-se a era dos blockbusters no cinema ,dos heróis anabolizados e da revisão da guerra(Rambo e Bradock retornam ao Vietnã e,sozinhos, vencem a guerra !).

No período de crise,no entanto, surgem filmes que irão pensar a violência social como “Dirty Harry- Perseguidor Implacável”, de Don Sigel (1970), “Taxi Driver”(1976) de Martin Scorcese e os faroestes de Sam Peckimpah, que retratavam um Oeste extremamente violento e desononrado, completamente despido da aura de mito fundador da nação. A graphic novel “O Cavaleiro das Trevas” (The Dark Knight Returns), de Frank Miller é de 1986, portanto distante dez anos do olho do furacão econômico, mas nem a ferida desmoralizante do Vietnã ainda não havia sido completamente sanada, como mostra Rambo-Programado para Matar, de 1982, - este também um herói traumatizado e em desacordo com seu mundo - como a criminalidade continuava um problema por se resolver e a economia ainda sofria os efeitos da segunda crise do petróleo ( que duram até justamente 1986). Para se ter uma idéia, a prostituição e o crime continuariam sendo problema em Nova York (e Gotham City é N.Y !) até que a gestão Rudolph Giuliani (1994-2002) derrubasse as taxas em mais de 50 %.
Os problemas do mundo real já tinha chegado aos quadrinhos de super-heróis havia algum tempo; a série "Green Arrow/Green Lantern", por exemplo, na década de 1970 já lidava com questões como racismo, desemprego e drogas. No entanto os super-heróis continuavam além de qualquer questionamento, que só viria com "Watchmen", de Alan Moore em 1986. Em "O Cavaleiro das Trevas" Miller traz este elemento novo que é a perturbação psicológica do herói. Ele é tão obcecado quanto Travis Bickle, o personagem de Robert DeNiro em “Taxi Driver”. Há algo de maníaco na busca destes dois por limparem suas cidades que descende diretamente de Ethan Edwards , personagem de John Wayne em “Rastros de Ódio” , de John Ford (1956). Lá o herói do western fora reduzido a um quase morto-vivo a quem só importava sua busca insana e violenta pela sobrinha raptada pelos índios 14 anos atrás, ainda que ela se recusasse a retornar.
Bruce Wayne, aposentado, sente como se um demônio estivesse urrando para sair de dentro dele. A bebida cara, as mulheres, as corridas de carro, nada disso lhe satisfaz. Apenas quando volta a vestir a roupa de Batman é que se sente vivo de fato. Já Travis , veterano do Vietnã ,é uma criatura dominada por uma solidão patológica, incapaz de se relacionar com quem quer que seja, mas que acredita ser talhado para limpar as ruas, o que fará trabalhando seu corpo , mudando drasticamente seu visual (cabelo moicano e farda militar) e se valendo de uma tonelada de armamentos. Para Wayne como para Bickle, a apoteose desta missão autodestrutiva (que tem algo de sagrado e masoquista) deixa ambos a um passo da morte.
Ainda que tanto em “Taxi Driver” como em “O Cavaleiro das Trevas” conheçamos a cidade decadente pelos olhos dos protagonistas, no filme de Scorcese, através do uso da câmera lenta e outros efeitos ,percebemos o quanto esta é uma realidade distorcida pelo racismo, misoginia e isolamento patológico de Travis. Aliás, é frequente a câmera abandonar Robert DeNiro e focalizar somente as ruas de NY e sua fauna de prostitutas, bêbados e pequenos artistas.A cidade,aqui, está viva. Já na graphic novel o que Batman vê e nos diz é inquestionável. Não nos é mostrado nada além daquilo que corrobora a visão do herói. A cidade, para Miller, está morta.
O autor é tão ultradireitista que ridiculariza Ronald Reagan e o otimismo de sua política ao mostrar o presidente como um paspalho piadista. Também o Superman (que no cinema personificava essa fé nos valores americanos) é mostrado como um herói de cabresto, acovardado. Para Miller, nem o presidente nem o Homem de Aço sabem o que realmente acontece nas ruas de Gotham/New York nem compreendem que é pela força, pela iniciativa (violenta) do cidadão tornado Travis Bicle/Batman que as coisas se resolvem.
A equação pessimismo+crime+desemprego impôs mudanças drásticas ao perfil dos personagens heróicos nos anos 1970. Resta saber como eles irão se mostrar daqui em diante quando a situação parece se repetir; em entrevista à Folha de São Paulo, publicada no último dia 6, o cientista político Demetrius Papademetriou teceu comparações entre a crise da década de 1970 e a atual. Em 1982 os índices de desemprego eram maiores, no entanto os demais indicadores econômicos “não estavam nem perto de ser tão ruins”.
A diferença,claro, fica por conta do elemento utópico encarnado na figura de Barack Obama No cinema já tivemos Milk, de Gus Van San, sobre o heroísmo de um político homossexual na defesa dos direitos das minorias e Gran Torino, de Clint Eastwood, sobre o veterano reconciliando-se com aqueles que outrora foram tomados por inimigos. Talvez , mesmo com a crise, estes sejam tempos seja muito mais de um Superman do que de um Batman.

A OBSESSÃO MORALISTA DE FRANK MILLER

Miller nunca cessou de acreditar na luta do homem cristão ocidental contra um mundo em decadência. Para ele, a decadência é antes de tudo moral e ele a expressa na forma de cidades destruídas, sujas, escuras (tudo é uma grande Sin City). Extirpar “a escória do mundo”, mantra de seu Batman é uma obsessão constante. Tanto em "Cavaleiro das Trevas 2", quanto em "Ronin", mendigos são retratados como mortos vivos, criaturas que grunhem ao invés de falar e saem dos esgotos em busca de vítimas. Ao herói cabe espancá-los e colocá-los de volta ao buraco de onde vieram.
Em "300 de Esparta" há a exaltação da honra de uma sociedade tão belicista quanto os EUA da Era Bush em oposição a um povo oriental tomado por crendices místicas. Tal povo (todo oriente médio, a saber) deve ser exterminado. A missão, ainda que leve à morte dos nobres espartanos(norte-americanos) é não sucumbir ao avanço destes. Que esta graphic novel tenha sido produzida durante o momento em que a globalização levou a migração (legal e ilegal) a níveis inéditos na História humana, forçando a uma tomada de posição frente a culturas diferentes, é significativo. Ainda que qualquer um saiba que a taxa de natalidade da população dos países desenvolvidos é cada mais baixa, o que implica em pouca mão de obra disponível – pelo menos era assim antes da crise- reconhecer a necessidade que seu país tem destes “persas” com sua religião exótica é para ele impensável.
Quanta diferença de Gran Torino, portanto.
Por fim, percebemos que Miller é o exato oposto de Will Eisner, um home que via o mundo,em crise ou não, com olhos poéticos (como demonstrei neste blog ao longo de 4 textos). A adaptação de uma obra sua, Spirit, por Miller não poderia ser mais inadequada. O fracasso,portanto, foi justo.
Nada aqui leva em conta a qualidade ou não dos trabalhos de Miller. Isso já foi assunto de longo e caloroso debate no site Universo HQ.

Um comentário:

Daniel Luppi disse...

finalmente resgatei minha máquina de volta.
muita coisa rolou na net de abril pra cá...
retomo a leitura do Bar deste texto em diante. paulatinamente.