quarta-feira, 30 de julho de 2008

A TEORIA GERAL DE LAERTE


Tira de Laerte publicada hoje pela Folha de São Paulo. Só mesmo um talento gigantesco para inserir tanto significado numa única imagem. Laerte dispensa a piada (mas não o humor) para nos falar sobre a sociedade pós-moderna da saturação de imagens e informação, onde a esfera privada forçosamente se confunde com a pública.
Jair Ferreira dos Santos, em “O que é Pós-Moderno”(Brasiliense) nos fala da “des-referencialização do real e a des-substancialização do sujeito,motivados pela saturação do cotidiano pelos signos”. A transformação do real por um tipo de estética da maquiagem, como num comercial de TV é uma constante e todos assistem a todos como num programa (lembrando que Santos escreveu o livro na década de 1980, antes portanto da popularização da internet e dos reality-shows). A sociedade na qual o indivíduo se expõem (desnuda) é a mesma da celebridade e dos sites de relacionamento. A celebridade é aquela que vale não o quanto pesa, mas sim o que faz os outros acreditarem que ela é. Seu valor está em quantas vezes consegue ser vista em capas de revista ou programas de tv, independente do que faça (ou mesmo que não faça nada). Já os sites de relacionamento propõem que o indivíduo construa uma identidade e a exponha tantas pessoas quanto possível. Suas conversas, preferências e confissões migram da esfera privada para a pública, sempre tendo o cuidado de ser coerente com a imagem construída. Tanto um (celebridade)quanto outro(internauta) está se desnuda perante os olhares alheios.

terça-feira, 29 de julho de 2008

O "EXCESSO" DE ELEMENTOS EM "O GRITO DO POVO"


Outra cena de página inteira, desta vez de O Grito do Povo (Conrad) de Pierre Vautin e Jacques Tardi. Aqui o registro é bem diverso do de Will Eisner; ao contrário da supressão de elementos deste, Tardi carrega as cenas de sua HQ de modo a deixar pouco espaço livre. Os quadrinhos também são maiores que os habituais e o formato é retangular (apelidado de "widescreen" em referência à tela de cinema). A razão para o "exagero", tanto de elementos quanto de tamanho, é o fato da graphic novel, ao contar a história da Comuna de Paris, nos falar mais através da cidade, suas ruas e edifícios do que pelas histórias trágicas das pessoas tragadas pelo turbilhão de violência que foi a revolta do povo parisiense contra Luís Bonaparte. A opulência dos belos edifícios ganha ares despóticos mas nem por isso deixamos de lamentar sua destruição.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

RELANCE DO BRILHANTISMO DE WILL EISNER


Nesta cena da graphic novel O Edifício (Editora Abril) vemos somente o necessário para compreender o que se passa. Nestor García Canclini em “Culturas Híbridas” (Edusp) diz que as histórias em quadrinhos nos revelam a “potencialidade visual da escrita e o dramatismo que pode ser condensado em imagens estáticas”. Temos aí um exemplo claro. Tivesse Eisner “completado” a cena, compondo-a com todos os detalhes possíveis (pessoas, automóveis,etc), não direcionaríamos nosso olhar (nem nosso sentimento) unicamente para a existência solitária do poeta em primeiro plano. Nas HQs (como na pintura) o olhar é livre para buscar a porção da imagem que mais lhe interesse, durante o tempo que considere necessário, recurso impensável ao cinema, por exemplo. Neste, mesmo lançando mão da profundidade de campo ou do plano seqüência, o olhar ainda é tolhido pelo tempo disponível.
Eisner abriu mão de uma boa porção de realismo da cena e se fez valer de toda capacidade expressiva que os quadrinhos permitem.

domingo, 27 de julho de 2008

O DARWINISMO DOS QUADRINHOS E SÉRIES DE TV



Seres humanos, cada um à sua maneira, sofrem mutações que se manifestam na forma de superpoderes. Muitos humanos normais passam a odiar e temer estes mutantes, por serem não só diferentes, mas também o próximo passo na evolução humana. Essa é a premissa das histórias em quadrinhos dos X-Men e da série de tv que quase tudo deve a eles, Heroes. Mas também, quem diria, idéia bem parecida já esteve por trás de outro super herói, o Superman. Em 1938, na primeiríssima historia do herói, em Action Comics 1 (republicado pela Panini em “Superman Crônicas- Vol ”) vemos que ele tem poderes incríveis os quais a revista atribui a uma constituição física “milhões de anos à frente” da dos terráqueos. A idéia, a bem da verdade, nunca foi de todo abandonada, visto que um de seus apelidos nos quadrinhos é “man of tomorrow”, o homem do amanhã , que batizou até um título do herói nos EUA.
Na verdade essa concepção de evolução é baseada muito mais num estranho senso comum do que em conhecimento científico propriamente dito. A evolução como apresentada nas séries, filmes e quadrinhos tem muito pouco em comum com o que foi dito por Charles Darwin no final do século 19.
A evolução não tem uma direção, não conhece aperfeiçoamento, apenas mudança. Não há uma “melhora”, apenas adaptação.
Acreditar no contrário é, como diz o paleontólogo Stephen Jay Gould em “Maravilhosa Obra do Acaso” (Nova Fronteira, 1998) “ apenas a imposição de nossos preconceitos ocidentais sobre um entendimento de que ocorre evolução”. Por preconceitos ocidentais, entendamos a persistente crença vitoriana na razão e no progresso (donde o positivismo que nos legou a inscrição “ordem e progresso”em nossa bandeira). Esta fé na razão tremeu com Nietzsche e foi ao chão com Freud e sua descoberta do inconsciente. Mas evolução, para muita gente ,continua sendo sinônimo de progresso até hoje.Muitos ainda acreditam numa linha evolutiva que vai dos seres inferiores aos superiores, sendo o mais desenvolvido de todos, o ser humano, que nem de animal gosta de ser chamado, aliás. Não foi isso que Darwin disse.
Gould, que morreu em 200x, lutou a vida inteira contra esse tipo de idéia e com isso se tornou um dos maiores divulgadores científicos do século20. Sua popularidade foi tamanha que ele foi parar até em um episódio de Os Simpsons.
Voltando às tramas de Heroes e X-Men, temos a idéia de que as “mutações” são um sinal de uma melhora do modelo atual para um próximo, mais “avançado”. O Homo Sapiens seria um estágio anterior na escala evolutiva. A este ser superpoderoso caberia, voltando à metáfora mercadológica (estranha, mas apropriada) ser o novo modelo, aperfeiçoado, melhor e, portanto, tomar o lugar que hoje caberia a nós.
Ocorre que, na verdade, só as mutações favorecidas pelo meio-ambiente é que terão descendência, que se constituirão nos indivíduos “dominantes”(no sentido de terem prevalecido) em algum momento do futuro. A mutação não vem pronta, como sugere o seriado. Há, sim “transformação contínua e gradual”, de acordo com Gould em “Darwin e os Grandes Enigmas da Humanidade” (Martins Fontes, 1999). Prova disso é que várias linhagens de hominídeos conviveram, sem que se possa dizer que uma descendeu da outra. Os que melhor se adaptaram (nós) foram os que sobreviveram. “O Homo Sapiens não é o produto de uma escada que desde o início sobe diretamente em direção ao nosso estado atual. Constituímos tão-somente a ramificação sobrevivente de um arbusto outrora exuberante” diz o paleontólogo no mesmo livro. Curioso é notar que a idéia de escada, ou de escalada rumo a um ponto mais alto está presente no nome “científico”adotado pela Marvel para seus mutantes, Homo Superior.
Desde a publicação de A Origem das Espécies em1859, até hoje, o darwinismo foi aceito por quase todo mundo, (exceção feita aos Testemunhas de Jeová , os criacionistas e George Bush) figura em todo livro escolar, mas não foi devida e inteiramente compreendido. Algum roteirista podia se esforçar um pouquinho. Seria, uma, hmm, err, ...evolução.

MORTOS QUE VOLTAM À VIDA, LÁ E CÁ - PARTE 1

Mortos que levantam do túmulo numa espécie de semi-vida, os zumbis, são parte do folclore caribenho que tornaram-se tema muito caro ao cinema de horror norte-americano (e mundial) desde que, no turbulento ano de 1968, George Romero filmou o contracultural “A Noite dos Mortos-Vivos”. Este subgênero do terror foi à Itália, com Lucio Fulci (Holocausto Canibal) e tem até um exemplar sendo produzido neste momento aqui no Brasil, “Mangue Negro”, de Rodrigo Aragão.
George Romero retrabalhou a idéia original do morto ressuscitado pela magia vodu e lhe acrescentou algumas características que são repetidas até hoje, como a fome por cérebro e a o fato de que quem é mordido por um zumbi se torna um deles. A idéia do mal contagioso não é original (basta lembrar das lendas de lobisomens e vampiros) e expressa uma convicção que nasce com o crença mos rituais de bruxaria e nas lendas de íncubus e súcubus, que se deflagraram desde entre os sécs.14 e 15e tiveram vida mais longa nos países protestantes do que no resto da Europa, como nota Robert Muchembled em Uma História do Diabo (BomTexto, 2001).
Outra característica marcante dos filmes de zumbis é a perda da personalidade individual que se verifica quando alguém se torna um morto-vivo. Nisso, ela é inerentemente norte-americana, cujo maior pesadelo é a perda dos direitos individuais (“bandeira”dos pioneiros das treze colônias que deram origem ao país)daí seu horror a regimes totalitários e/ ou socializantes.A submissão completa do indivíduo a uma esfera maior e mais importante é para eles algo impensável.
Outro ponto de vista interessante quem nos trás é Roberto DaMatta em A Casa e a Rua (Rocco, 1997) DaMatta separa as sociedades em dois tipos básicos (com graus de variações, claro): as relacionais e as individualistas. A maneira como cada uma delas encara a morte é bastante diversa.
As chamadas sociedades individualistas (os EUA, por exemplo) tendem a pensar, discutir, filosofar a morte. Nas palavras do antropólogo, para eles “esquecer o morto é positivo, lembrar o morto é assumir uma espécie de sociabilidade patológica”. Já nas sociedades relacionais, que privilegiam as relações sociais em detrimento do indivíduo (Brasil incluso), temos o morto como alguém que deve ser lembrado, cultuado até. Mesmo após a morte, ele continua tendo um papel social. Muito significativa é a tradição (hoje em vias de desaparecimento) dos quartos cheios de retratos dos antepassados mortos. O morto, então, não é visto por nós como maligno,mas sim como alguém a quem se pede conselhos e que, por vezes, pode até vir “assombrar”, desde que tenha um motivo justo. Ao contrário, numa sociedade como a norte-americana (que leva ao extremo as características da sociedade individualista) o morto só pode ser visto como uma entidade maligna. E não são poucos os exemplos, os vampiros são mortos-vivos como tambémo são a múmia ou Fredy Krueger e Jason Voorhees.
Aqui no Brasil, o melhor exemplo está, claro, com o excepcional cineasta José Mojica Marins e seu personagem Zé do Caixão. Em À Meia Noite Levarei sua Alma, de 1964, vemos mortos que retornam à vida assombrando um pequena cidade. A procissão dos mortos (vista também em Pequenas Histórias, de Helvécio Ratton, ainda em cartaz)cumpre o dever de vingar as atrocidades cometidas por Zé do Caixão. Assustadores, perigosos, porém justos, os mortos-vivos brasileiros espelham perfeitamente a teoria de DaMatta e marcam a diferença de concepções entre nós e os norte-americanos.
Voltaremos ao tema.

MIRZA, DE EUGÊNIO COLONNESE, ERA UM DRÁCULA "TROPICALISTA"


Quem tem mais de 30 anos provavelmente já leu histórias em quadrinhos de terror e, se as leu, a possibilidade de uma delas ter sido estrelada por uma bela morena de corpo sedutor e dentes afiados é grande. Mirza, a mulher Vampiro, foi criada pelo desenhista italiano radicado no Brasil Eugênio Colonnese em 1967 (antes da prima rica Vampirella, é bom que se diga) e seguiu sendo publicada, com breves interrupções, por mais de 20 anos, um feito extraordinário para o eternamente turbulento mercado editorial brasileiro.
Hoje a personagem amarga injusto esquecimento, que começou com o desaparecimento dos quadrinhos produzidos por brasileiros das bancas de jornais, exceção feita às produções de Maurício de Souza. Não migrou para o cinema, não chamou a atenção de artistas, nem ganhou menões na tv. Não se tornou "pop", enfim. O limbo em que mergulhou a personagem (que teve suas histórias republicadas em 2001 pela Escala e só este ano uma edição de histórias que permaneciam inéditas pela editora Mithos ) é lamentável não porque estas fossem muito boas (nem sempre eram) nem mesmo pelos desenhos de Colonnese, estes sim invariavelmente excelentes. Mas porque, enquanto foram publicados quadrinhos de terror produzidos por autores nacionais, esta foi uma das raras criações realmente originais a surgir.
As histórias de Mirza eram notáveis por misturar, sem nenhum pressuposto teórico ou coerência de qualquer tipo, a tradição do terror anglo-americano (que nossos autores tanto copiavam) com algo de propriamente brasileiro.Mas que algo é esse?
Vejamos: Mirza é na verdade a aristocrata Mirela Zamanova, nascida na Cracóvia (só para não dizer Transilvânia) e filha de um poderoso conde dono de um soturno castelo, em cujas redondezas vemos árvores ressequidas e revoadas constantes de morcegos. Ela tem também um ajudante corcunda, maligno e puxa-saco que se traja exatamente como os mordomos ingleses que vemos nos filmes.Mais típico, impossível.
Por outro lado percebe-se uma esculhambação geral com outros elementos das histórias vampirescas , uma esculhambação que não tem nenhuma intenção de ser humorística, e que, não sendo paródia, se configura como subversão pura. Que outra coisa dizer de uma história que mostra Mirza de biquíni se bronzeando em plena praia de Ipanema? Um dos elementos mais caros à mitologia dos vampiros, todos sabemos, é a aversão destes seres ao sol. E qual o motivo disso ter sido simplesmente descartado nas histórias, sem merecer sequer uma justificativa? É esse algo de propriamente brasileiro, que nunca conseguiria conceber uma bela mulher cuja existência ficasse oculta aos olhos de todos, que não pudesse ser livremente admirada. É o gosto pelo corpo e não repulsão a ele. Mirza, então, nada tem em comum com o vampiro típico, cuja pele é pálida como a de um defunto, muito menos com uma mulher do leste europeu, o que é quase a mesma coisa, diga-se. E nunca, nunca mesmo se viu Mirza dormindo num caixão, rodeada pela terra de seu país natal. Seu criador não a via (e nem seus leitores) como uma morta-viva, como um aborto, uma subversão da Criação mas sim como uma força sexualmente agressiva, impossível de ser contida. Uma pulsão. Daí o gosto pelo Sol, pela praia, por histórias passadas muito mais em hotéis de luxo do que em becos escuros ou castelos sombrios.No fim das contas, não dá para dizer que Mirza fosse um personagem caracteristicamente brasileiro, ela não trazia em si nem a ambigüidade de caráter de um exú (como ocorre,por exemplo, com o Zé do Caixão),não tinha nenhum traço “macunaímico”, nem mesmo espelhava a cordialidade nas relações de poder. Seu valor estava justamente neste caldeirão que ferveu tradição, inovação e elementos culturais diversos sem reverência por nenhum deles.