sexta-feira, 27 de março de 2009

HQ- SUPERVILÕES ORDINÁRIOS



Ao mesmo tempo em que lança a versão recolorizada do clássico A Piada Mortal, a Panini traz às bancas “Coringa”, HQ de Brian Azzarello e Lee Bermejo em que o palhaço do crime também é astro absoluto desde a capa. Para as duas, o mesmo tratamento : capa dura ,papel especial e preço justo, (R$ 19,90, A Piada Mortal; R$ 24,90, Coringa).
A dupla Azzarelo-Bermejo já trabalhou junta outras vezes, em Batman-DeathBlow (publicada aqui em 2003 pela WildStorm) e em Lex Luthor – Homem de Aço (publicada em capítulos pela Panini na revista Superman em 2008). Em ambas a qualidade dos desenhos de Bermejo encontra rival à altura no texto de Azzarello, que quem já leu “100 Balas” conhece bem. O roteirista tem um cuidado com os diálogos que é raro no mundo dos quadrinhos, principalmente em se tratando de histórias de super-heróis.
Como no filme Batman-Cavaleiro das Trevas,de Cristopher Nolan, nesta Graphic Novel a caracterização do Coringa muda; o tradicional sorriso congelado na face branca é substituído pela cicatriz e pela maquiagem borrada. E Gotham City de gótica não tem mais nada, ela é uma apenas uma metrópole decadente (no que contribui muito o trabalho do auxiliar Mick Gray, desenhista técnico). Alguns cenários curiosamente lembram um (nada prazeroso) passeio noturno pelo Brás paulistano, com seus prédios do início do século 20 em frangalhos e seus enormes galpões industriais. A opção de Azzarello, fica claro, é pelo realismo, e é dessa forma que somos apresentados ao demais inimigos do Homem Morcego: Crocodilo, um negro anabolizado e gigantesco, com um problema que torna sua pele extremamente rugosa; Pinguim, um agiota, pequeno negociador envolvido com todo tipo de ilegalidade;Arlequina, stripper; Charada, traficante com pontos de interrogação tatuados em estilo tribal, e Harvey Dent, o Duas Caras, chefe de gangue com bons contatos com a banda podre da polícia.
Ou seja, são tipos que frequentam as páginas policiais de jornais todos os dias,fazendo negócios escusos ou se enfrentando numa cidade que pode ser São Paulo ou Praga ou Nova Iorque. E é neste mundo de vilões ordinários, que nada têm de super, é que acompanhamos o peixe-pequeno Johnny Frost desde o momento em que, eufórico, integra a gangue de um recém libertado Coringa à noite dramática em que este finalmente se depara com o Batman.
Como em “Caminhos Perigosos”(1973), de Martin Scorcese ou na série “Família Soprano”(1999-2007), de David Chase, os crimes aqui não têm nada de espetaculares, são mera rotina de um cotidiano violento, motivo pelo qual Azzarello não faz nenhum deles, nem mesmo um estupro, saltar aos olhos do leitor.A exceção fica por conta da primeira morte, que visa mostrar o tamanho da insanidade do Coringa e o quanto ele é diferente dos demais criminosos. Mesmo assim, não há emocionalismo e o fato do narrador estar bêbado gera dúvida sobre se a cena ocorreu exatamente como foi mostrada .
Num mundo que já viu o 11 de Setembro ao vivo pela TV e é bombardeado diariamente por imagens de violência vindas dos quatro cantos do mundo, supervilões já não impressionam ninguém. Sendo assim, só restam dois caminhos às revistas de super-heróis : um retorno ao lúdico e ao fantasioso ou um mergulho profundo na realidade ;quem ficar no meio vai apenas patinar. E a dupla Azzarello -Bermejo é certamente a mais indicada para a segunda opção.

quinta-feira, 19 de março de 2009

TEATRO- NEKRÓPOLIS


Nekrópolis, espetáculo de formação do Núcleo do Ator da Escola Livre de Teatro de Santo André conta a história de uma organização terrorista,a Estirpe ,cujos atos subversivos consistem em desenterrar corpos e expô-los em locais como Shopping Centers e parques freqüentados pela classe média alta.
A narração se dá em dois tempos diferentes, intercalados por números musicais; no presente assistimos ao julgamento dos membros da Estirpe(estamos aqui nos domínios do suspense, portanto); no passado, aos atos necrófilos e sua repercussão junto à imprensa e a população(muitas delas bem engraçadas).
O corpos desenterrados pelos terroristas são de pessoas pobres, mortas em circunstâncias em que o Estado se fez ausente(seja na forma de segurança, seja na da saúde).
Com isso eles pretendem esfregar o “verdadeiro Brasil” , com todo seu odor desagradável,na cara dos que se escondem em prédios de luxo e condomínios e de bacharéis que acreditam que o país finalmente entrou nos eixos ao consolidar o processo democrático e permitir a chegada de um legítimo representante do povo ao poder.
E é para implicar de vez o espectador na questão que os atores iniciam o espetáculo na platéia, para onde voltarão algumas vezes, durante os números musicais.
Pode-se argumentar que premissa da peça seja de certa forma questionável. Não há por que crer que o choque pelo horror de nossas mazelas faria as classes altas se compadecerem de um Brasil pobre e violento, ou pelo menos olharem para ele.Ou que isso seja “subversivo” para além do ato criminoso. Vivemos numa sociedade em que essas imagens estão diariamente na TVs e na internet.E a mídia,ou parte dela, exibe cadáveres com estardalhaço,sob a justificativa hipócrita de denúncia das injustiças (quando o que quer é apenas garantir uns pontos no IBOBE).Tal superexposição da violência tem como resultado não mais a indignação (até as passeatas de ricaços em Copacabana desapareceram), mas apenas entorpecimento.Todos nós, ricos ou pobres, vemos com certa naturalidade e indiferença essa desdita nacional que governo após governo diz estar a um passo de resolver.
No entanto, se apenas levantasse essas questões a peça já estaria fazendo mais do que boa parte de nossos cineastas(esforçados que estão em não desagradar as empresas que lhes financiam). Por fazer isso de maneira tão corajosa e divertida é que esta peça vale ser vista e revista.
Quando morre, todo mundo fede igual”, diz um verso de uma das músicas. Que o dissesse(se fosse possível) Sérgio Naya !
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E fica aí um apelo: trasnformem essa peça num filme a altura dela. Será que temos um David Fincher por aí?


Nekrópolis está em cartaz todo sábado e domingo até dia 31 de maio no Teatro Conchita de Moraes, Praça Rui Barbosa, s/nº - Santa Terezinha , Santo André - Telefone: 4996-2164

PAPO DE BALCÃO !

Por que, em nome de Deus, o canal TCM está exibindo filmes dublados E TAMBÉM COM legendas??? Isso lá faz sentido?? Enquanto isso o TelecineCult dá um passo a frente e exibe filmes como O Bebê de Rosemary, de Roman Polanski (passou ontem) em widescreen legendado.
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Um Abraço vai para o Ed , do Cineclube Alpharrabio http://cineclubeemsantoandre.blogspot.com/ que visitou este blog ela primeira vez. Aliás, quem perdeu a sessão de Metrópolis (ver post anterior) pode assisti-lo no Telecine Cult, dia 22 (sexta-feira) às 22h ou dia 24(terça), às19h:50. Não é a mesma coisa, mas...
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Quem quiser conferir clipes bacanas deve sempre dar um pulo no Balaio Baio http://www.balaiobaio.blogspot.com/, blog do Daniel Luppi. Estam semana, "Barcelona", por Giulia y los Tellarini, trilha do filme "Vicky, Cristina,Barcelona", de Woody Allen.

sexta-feira, 13 de março de 2009

AGENDA CULTURAL- Eventos gratuitos no Grande ABC

  • Amanhã começa a mostra Pedro Almodóvar-o Homem que amava as mulheres no teatro Abílio Pereira de Almeida, em São Bernardo do Campo com o filme Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, de 1988. Serão exibidos até o dia 4 de abril (sempre às 20h dos sábados) Tudo sobre Minha Mãe (1999), Fale com Ela (2002) e Volver (2006) . É bom dizer que, ao contrário do que sugere o nome da mostra, Almodóvar não morreu.
    No mesmo local, também as mostras Documentário recente no cinema nacional(domingos, 20h) e Clássicos Disney(domingos 16h).
    O teatro fica na Praça Cônego Lázaro Equini, 240 Baeta Neves; tel.: 4125-0582

    A Casa da Palavra (Pça do Carmo, S/N- Santo André) dá início à sua programação com o ciclo de Palestras"Racionalidade e Melancolia, o Pensamento Humano de Ulisses a Frankenstein" com o professor Leandro Gaffo todo sábado, até o dia 28, sempre das 15 às 18 h. O tema de amanhã é Ulisses e o Canto das Sereias: Desejo, Sacrifício e Auto-Interesse no confronto com a Natureza.
    Ainda este mês as palestras A mulher ideal e a mulher real no Brasil do Século XVII com a professora Clarisse Assalim, dia 17 das 19 às 21h e no dia seguinte no mesmo horário, A estética barroca e marcas do feminino,com o Professor Juarez Donizete.
    Informações pelo fone :4992-7218

  • O Cineclube Alpharrabio segue exibindo filmes do alemão Fritz Lang. Dia 18 às 14h30 é a vez de O Tigre de Bengala(1959)e dia 25, no mesmo horário, passa Sepulcro Indiano (1959).
    O Cineclube, que fica no Espaço Cultural Alpharrabio (R.Eduardo Monteiro 151, Santo André) exibe filmes em DVD com retroprojetor. Após a sessão, um bate-papo entre os presentes.
    Inf. em
    www.alpharrabio.com.br ou http://cineclubeemsantoandre.blogspot.com


Vale lembrar do texto escrito em 16 de janeiro pelo crítico Francis Vogner dos Reis exclusivamente para este blog, em que ele analisa a obra de Lang.

sexta-feira, 6 de março de 2009

WILL EISNER E A REVOLUÇÃO NOS QUADRINHOS 1- O BALZAC DAS HQS


Em 1978, Will Eisner vira de cabeça para baixo o mundo dos quadrinhos com o lançamento do primeiro romance gráfico (graphic novel) “Um Contrato com Deus- e outras histórias de cortiço” (Devir), que formaria uma trilogia com “Força da Vida”, de 1988 e “Avenida Dropsie em 1995”. Nunca antes havia ocorrido aos quadrinhos se aproximarem tanto do mundo real, dos pobres, dos vitimados pela Grande Depressão, dos moradores de cortiço, enfim.
A nova empreitada de Eisner, que já havia alcançado a consagração com as aventuras do detetive Spirit, era marcada pela ousadia.
Contrato com Deus era um livro composto por quatro contos, só que desenhados, o que embaralhava de vez as fronteiras entre literatura e quadrinhos, até então restritos ou às tiras para jornais ou às revistas. Os contos, aliás, eram histórias passadas numa vizinhança pobre do Bronx, mas especificamente na Avenida Dropsie. Até então os quadrinhos eram, de modo geral, histórias aventurescas, fantasiosas ou cômicas (daí seu nome em inglês, comics). Havia também algum tipo de crônica de costumes, mas nada que se aproximasse da abordagem direta, sem desvios ou fabulações de nenhum tipo feita por Eisner.
A reviravolta de Contrato com Deus é uma chegada tardia dos quadrinhos à maturidade na única forma possível, o rompimento com a tradição e busca de alguma forma de “realismo”, numa guinada bastante semelhante à que representou Balzac (e de certa forma Stendhal) para a literatura.
Em História Social da Arte e da Literatura (Martins Fontes), Arnold Hauser nota que
O naturalismo não tem por alvo a realidade como um todo, não a ‘natureza’ou a ‘vida’ em geral, mas aquela província de realidade que se tornou especificamente importante para essa geração. Stendhal e Balzac assumiram a tarefa de retratar a nova sociedade em mudança”.
Balzac, nos 80 romances que compõem a sua Comédia Humana ousa tratar do dinheiro, da ascensão social e das tórridas paixões, da realidade caótica da moderna Paris descrevendo, sem piedade ou maquiagem, ricos e pobres, exploradores e explorados.
Somente o operário morre no hospital no fim do seu esgotamento físico, enquanto o pequeno-burguês persiste em viver e vive, nem que seja aparvalhado; o rosto cheio de rugas, aplastado, velho, sem brilho nos olhos nem firmeza nas pernas, arrastando-se com expressão idiota pelos bulevares” diz em Fisionomias Parisienses.
É exatamente esse espírito que percebemos em Contrato com Deus quando lemos histórias como a do Cantor de Rua, onde o belo rosto e a bela voz que lhe rendem algumas moedas pelas ruas dos cortiços escondem um alcoólatra violento e explorador de mulheres. Ou na d’O Zelador, alemão solitário que bota medo nos inquilinos, a quem vê com desprezo, mas que também deseja ardentemente uma pré-adolescente moradora do prédio de que cuida. Ela, por sua vez, oferece sua nudez em troca de algumas moedas. Os desdobramentos levam ao suicídio do zelador encarado com indiferença pela garotinha.
Não é drama, não há superseres, nem mesmo pode ser chamado de comics. É uma coisa nova, o romance gráfico e daí para diante os quadrinhos conhecem um novo rumo.

WILL EISNER E A REVOLUÇÃO NOS QUADRINHOS -2 AS MODERNIDADES NAS ARTES







A primeira fase da modernidade, em qualquer forma de arte, é uma revolução caracterizada por algum tipo de rompimento com a tradição em direção a uma aproximação da realidade, em detrimento de qualquer tipo de convenção ou idealização. Essa Realidade natural (por isso chamada de naturalismo) e quase sempre oposta à Verdade, expressão de uma verdade superior e inquestionável. Seria assim tanto na pintura como no cinema quando há rompimento com os temas e os gêneros e com as convenções próprias de cada arte. No entanto o que se quer fazer aqui é encontrar paralelismos, coincidências, precedentes, não uma relação direta do tipo a pintura que influenciou o cinema que influenciou os quadrinhos o que seria algo extremamente ingênuo.

Na Pintura
Na pintura há um rompimento com os Grandes Temas (Histórico, Alegoria, Sacro, Retrato, Paisagem , Natureza Morta) que eram hierarquizados (Histórico e Sacro tinham mais valor do que uma natureza morta, por exemplo) desde Aristóteles para seguir rumo a uma arte visual, sem embasamento filosófico.
Segue-se uma busca por retratar, com todo suor e rugas, as pessoas do povo, como fariam, por exemplo, Honoré de Daumier (1808-1879) e Goustave Courbet (1818-1877) que para Gombrich “não queria formosura, queria verdade”(A História da Arte- LTC)- verdade aqui no sentido de realismo. Giulio Carlo Argan diz que “Courbet quer viver realidade como ela é, nem bela nem feia”(Arte Moderna- Companhia das Letras).
Não há mais lugar, para estes artistas, para pose, linhas fluentes ou cores impressionantes. Tampouco para a grandiloqüência de herdeiros de Rafael, como Jean Domimique Ingres (1780-1867).
Baudelaire dizia, ao defender a pintura do aquarelista Constantine Guys (1805-1892 ) que “os planejamentos de Rubens ou Véronèse não nos ensinarão a fazer chamalote, cetim à rainha ou qualquer outro tecido de nossas fábricas(...)o tecido e a textura não são os mesmos que os da antiga Veneza”(Sobre a Modernidade - Paz e Terra), exaltando que os modelos acadêmicos era apenas convenções que, apesar da beleza do trabalho em que resultariam, eram incapazes de dar conta do mundo moderno,só acessível a esta nova geração de artistas que rompiam com a tradição.

No Cinema
No cinema dos anos 1950 foi o neo-realismo que co filmes como “Roma Cidade Aberta” (1945) ou “Alemanha Ano Zero”(1948), ambos de Roberto Rosselini, buscava através do uso do plano-sequência (cena sem cortes ou edição) restaurar a ambigüidade da imagem, uma vez que no cinema clássico o que era mostrado correspondia ao que era de fato, sem margem para dúvidas (por exemplo quanto ao caráter de um personagem, que era ou bom, ou mau). Nessa busca pelo Real, recusava-se a filmagem em estúdio, a iluminação artificial e as grandes narrativas (feitos grandiosos, por exemplo). Mais próximo do trabalho de Eisner, no entanto, está o moderno cinema norte-americano, de "Uma Rua Chamada Pecado" (1951) versão da peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tenessee Willians dirigido por Elia Kazan ou "Juventude Transviada"(1955), de Nicholas Ray . Um Bonde... mostra também este universo de cortiços, de imigrantes, de paixões incontroláveis, violência e personagens humanos, demasiado humanos bem distante da classe-média harmoniosa até então reinante nas telas. Em Juventude... a imagem da família tal como retratada normalmente no cinema (como refúgio de paz e moralidade e espelho do Sonho Americano) é demolida e o abismo violento entre pais e filhos é escancarado.
Nestes filmes a tradicional oposição entre bem e mal desaparece junto da idéia de que existe um caminho desejável para todos (que era sempre apresentado sem questionamentos pelo cinema) para dar lugar à pluralidade de tipos humanos, de aspirações, de necessidades. Não há mais lugar para uma única Verdade aqui.
Aqui os personagens não são mais os do repertório cinematográfico clássico, não são mais “tipos” e sim pessoas.

Nos Quadrinhos
Will Eisner se tornou parte desta revolução ao romper com as convenções de gênero dos quadrinhos, ao adicionar complexidade e humanidade aos seus personagens e a despejá-los no mundo real, com problemas e dilemas reais ao mesmo tempo que abandona as grandes aventuras fantasiosas ou as histórias cômicas para se interessar pequenas histórias de pessoas anônimas, às quais alça ao patamar dos grandes dramas humanos.
Apesar de trazer para as HQs a pobreza, solidão e finais muitas vezes infelizes, Eisner guarda também alguma (contraditória?) semelhança com o cineasta Frank Capra (de "A Felicidade não se Compra" e "Aconteceu Naquela Noite" -1934) na medida em que tem uma fé inabalável na bondade humana, na possibilidade da redenção e vê o mundo com olhar não cruel, mas piedoso.

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Imagens :
Marlon Brando e Vivian Leight em "Uma Rua Chamada Pecado"; "Vagão de terceira classe", de Daumier; "O quebra-pedras", de Courbet.
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Usei o termo “modernidades”por que o conceito de modernidade é originalmente referido às artes plásticas e só pode ser tansposto para as outras artes(principalmente o cinema) de maneira problemática. Voltarei a este tema quando falar de Pós-modernidade e o cinema de Quentin Tarantino e Robert Rodrigues.

WILL EISNER 3- ATORES DE PAPEL




Will Eisner já foi elogiado por vários escritores, entre eles John Updike que disse que ele “não estava apenas a frente de seu tempo; os dias de hoje ainda estão tentando alcançá-lo”. Também o nome dado à sua obra a partir de 1978, romance gráfico (graphic novel) pode levar a crer que ele buscou uma associação com a literatura, que haveria de lhe emprestar alguma credibilidade inexistente nos quadrinhos.
A arte de Eisner é tão particular que fica difícil crer numa associação com qualquer outra forma de arte.

Em seu livro teórico “Narrativas Gráficas” (Devir) ele conta que usava uma associação com animais para desenhar seus personagens. Uma pessoa com feições leoninas seria entendida como perigosa, um com “cara de rato”(rosto miúdo, nariz fino, dentes proeminentes) como covarde , etc. Para ele, as pessoas associariam rapidamente (e inconscientemente) as características animais e as integrariam ao caráter do personagem, numa técnica que visava suprir uma deficiência inerente aos quadrinhos, a escassez de tempo e espaço (abundantes no cinema e na literatura).
No entanto ele mesmo ressalta que quando a ambientação sustenta o personagem, essa técnica pode ser até mesmo abolida.
Fazendo uso dessa técnica ou não Eisner teve uma capacidade única de criar personagens pois pensava com a mente de um ator, não de um desenhista. O desenhista de quadrinhos busca colocar o personagem numa posição que seja interessante visualmente e que exprima perfeitamente a ação; por isso nas histórias de super-heróis existem tantas cenas de luta idênticas, elas até fazem parte de um a espécie de ‘manual” de como se desenhar. Se Eisner, por outro lado, faz seus personagens se expressarem por gestos um tanto exagerados é por que eles “agem” como um ator de cinema mudo (que buscava que seus gestos fossem claros o suficiente na ausência de som) ou de teatro (que com técnica semelhante pode superar a distância entre o palco e o espectador). Os gestos são facilmente reconhecíveis, mas nunca uma mera reprodução de convenções. Ele conhece bem as particularidades dos corpos e mentes de seus personagens e usa isso na hora de coloca-los em movimento. Dois de seus personagens frente a uma mesma situação (perigo, por exemplo) nunca reagirão da mesma maneira, ainda que ambos estejam com medo.
E a caracterização dos rostos aliada à movimentação particular de cada um nos conta muito sobre a vida de cada personagem, coisas que nem são ditas nas histórias.
A primeira cena, de Pequenos Milagres (Devir) mostra A Sra Grepps, uma mulher sofrida, mas que luta para sustentar o casamento de Reba, a filha surda-muda. Já a segunda traz a Sra Fegel, mãe do rapaz sem uma perna casado com Reba. Duas mães de filhos deficientes, duas histórias de vida diferentes, duas pessoas completamente diversas.

WILL EISNER 4- A POESIA DAS ÁGUAS


Will Eisner é famoso por desenhar cenas de chuva como ninguém. Como já ressaltei ao tratar da peça Avenida Dropsie, este é o grande momento de suas HQs e está muito além da banalidade corrente na Tv ou no cinema, quando a chuva vem quase sempre endossar a tristeza de um personagem ou ainda adicionar alguma dificuldade à provação por que passa.
Eisner é um poeta nestes momentos.
Em O Edifício (Abril Jovem) Monroe Mensh fracassa ao se esquivar de uma bala num assalto vê uma criança ser atingida e morta. Desprezando a si mesmo, abandona o emprego e vai trabalhar de graça num orfanato. A caminhada para fora da loja onde era o principal vendedor rumo ao futuro incerto é feita debaixo de um temporal. Em Pequenos Milagres, Melba encontra nas ruas do cortiço um adolescente que age de maneira estranha e não sabe falar. É abraçada a ele que ela corre debaixo de chuva para casa, onde irá esconder o garoto e ensinar-lhe a ler, escrever e falar . Há exultação, ao contrário da resignação de Mensh, pois ficará nas entrelinhas uma atração sexual desta mulher madura e solteira que ao final da história, ‘fica para tia”trabalhando numa livraria. Em Contrato com Deus (imagem acima), a chuva cai pesadamente no dia em que o judeu praticante Frimme Hersh enterra sua pequena filha. Mais do que tristeza, a chuva é o cenário de uma batalha deflagrada assim que Hersh entra em casa e grita furioso contra Deus.
Seria tolo buscar um significado único que pudesse explicar todas essas cenas. É o grande Mistério da Vida, só acessível pela linguagem poética.