sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A IMAGEM E O PRÊMIO QUE A LOTERIA NÃO PAGOU

Já escrevi inúmeras vezes neste blog sobre a relação imagem-realidade. E não me canso de repetir o exemplo (que eu aprendi com o crítico Inácio Araújo) dos programas de mesa-redonda; tem uma imagem de um pênalti e os caras fiam discutindo por horas se foi ou não. Ou acontece de, numa imagem estar clara a penalidade máxima e daí surge a frase “não tem como ir contra a imagem”, só que no outro dia aparece uma outra, feita de um ângulo diferente, e tudo muda. A imagem é imprecisão completa, é morada da ambigüidade, só que engana muito bem – prometo voltar a isso semana que vem. Pois bem, a bola da vez é outro jogo, o da loteria, dos supostos ganhadores que não poderiam receber seu prêmio porque a lotérica não registrou o jogo. Primeiro houve a acusação de que a casa agiria sempre de má fé, não encaminhando as apostas para a Caixa Econômica. Agora diz-se que foi tudo culpa da funcionária, que cometeu o maior erro de sua vida. A prova disso é a imagem do circuito interno que mostra a garota conferindo o jogo e pondo as mãos na cabeça, desesperada ao perceber seu erro. Só que a imagem em si não prova isso, nela cabem muitas outras interpretações, inclusive a de que ela teria sido enviada pelo patrão para conferir se a lotérica tinha tido o azar de receber a aposta premiada, o que escancararia o trambique usual da casa.
Quem quiser pode voltar ao texto do filme Blow-Up ou assistir “Meu Tio Matou um Cara”, onde em determinado momento, as fotos que comprovam a traição da personagem de Débora Secco são postas em outra ordem(cinema=fotografias em sequência) mudando todo o entendimento do filme até então. “Blow-Up” e” Meu Tio...” são filhotes diretos da obra-prima Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

GÊNESIS






O crítico da Folha São Paulo Ricardo Calil, ao falar de “Sherlock Holmes”, de Guy Ritchie, disse que “um filme não pode ser julgado por sua proposta, e sim pela maneira com que a desenvolve”. Tomo a frase emprestada para tratar de “Gênesis”, de Robert Crumb, versão em quadrinhos do livro bíblico que parece ter decepcionado muitos dos fãs desta forma de arte. Não sem razão, afinal quando foi anunciado que o papa das HQs undergrounds e ícone da contracultura faria sua própria versão do livro do Gênesis se podia esperar de tudo, menos uma transcrição literal do texto bíblico, capítulo por capítulo, versículo por versículo. Ora, este é o sujeito que nos anos 1960 não se importava em desenhar animais fofinhos estuprando e consumindo drogas, para o horror de Deus e o mundo !
A Conrad, responsável pelo lançamento no Brasil (que aconteceu simultaneamente ao resto do mundo) botou lenha na fogueira colocando em volta do livro uma tarja vermelha com desenho de Adão e Eva fazendo sexo e os dizeres “este livro contém descrições de cenas de nudez e violência conforme o texto original no qual é baseado”.
É por isso que recorro à frase de Calil, porque é a partir do modo como Crumb desenvolve sua proposta que devemos julgar o mérito de seu trabalho, não a partir de como esperávamos que ele fosse (uma esculhambação com o texto sagrado, talvez). Sendo assim, a referência que devemos buscar está menos nos quadrinhos e mais na tradição pictórica ocidental, tanto as iluminuras medievais como as gravuras de Dürer(séc XVI) e Rembrandt (séc XVII).
As iluminuras eram ilustrações de versículos bíblicos que ornavam o livro sagrado primando pelo concisão e clareza, requisitos essenciais para se traduzir o texto numa única imagem. E é disso que se trata esta obra, afinal a cada versículo ou dois corresponde uma imagem num quadrinho. As primeiras sete páginas, que vão da criação do mundo à tentação de Eva, são de uma clareza tão absurda que o texto chega a se tornar dispensável. Daí por diante vemos que Crumb dedicou-se a uma tarefa arriscada, a de ombrear-se com gigantes da pintura na representação de passagens bíblicas. O quadrinista faz bonito, principalmente quando interpreta o texto, criando expressões perfeitamente críveis para os personagens. Do choro de Eva ao ser expulsa do jardim do Éden à cara atordoada de Noé diante da tarefa absurda imposta por Deus ou ainda o olhar insano de um Abraão prestes a matar o próprio filho, tudo é de altíssimo nível. São pouquíssimas as vezes em que o quadrinista cai na tentação de voltar ao seu estilo satírico e exagerado.
Robert Crumb parece ter assimilado Rembrandt , principalmente a gravura de 1656 “Cristo pregando” que mostra Jesus cercado de discípulos onde, apesar da entrada de luz estar atrás deles todos, a claridade emana de Cristo. Vemos esse recurso usado quase sempre que Deus aparece pessoalmente diante de cada personagem. Aliás, a ligação entre as gravuras e seu estilo é grande, afinal ele trabalha em preto-e-branco e com luz e sombra definidas pela quantidade de traços sobrepostos(as hachuras), algo em que Dürer era mestre.
Crumb também empreendeu um cuidadoso trabalho de reconstituição histórica, expresso discretamente como quando vemos Noé usar baldes de betume para impermeabilizar a madeira de sua arca. Ou seja, cada quadrinho deve ser apreciado lentamente, como se estivéssemos diante de uma improvável iluminura a um só tempo gótica, barroca e contemporânea onde, além da ação principal (bastante clara,com convém) temos ações de fundo, pessoas que não sabemos quem são mas que parecem absurdamente vivas. E aí que entra a interpretação de Crumb, sua visão do texto afinal este é um trabalho de dupla interpretação, em primeiro lugar textual (e este Gênesis tem notas que explicam suas opções, inclusive na tradução) e, em seguida, deste texto em imagens. No momento em que Abraão pede que a mulher Sara que faça sexo com os egípcios (para que eles não o matem- passagem polêmica que toma boa parte do espaço reservado às notas da edição), podemos vê-la séria e forte,porém com uma lágrima cortando-lhe a face. Nesta hora, em que as decisões do artista dependem só dele, é que vemos que Crumb está a altura da tarefa que chamou para si.
E, sim, a editora estava certa ao falar de nudez e violência (sem contar incesto, traição, etc), afinal disso a Bíblia está lotada. Só não culpem o criador (de Fritz, the Cat) pelo que está lá.


* Ilustrada de 08 de janeiro de 2010
**Texto produzido originalmente para o site HQ Maniacs

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

FILMEFOBIA


Em “FilmeFobia”, de Kiko Goifman, exibido pelo Canal Brasil anteontem e que terá reprise neste sábado às 23h, o crítico Jean-Claude Bernadet é perguntado se um fóbico falso(um ator) poderia produzir uma fobia verdadeira ao que ele responde “claro, a verdade está na imagem”. A pergunta pode parecer tola, afinal é disso (a verossimilhança) que vive o cinema desde D.W. Griffith no início do século 20.
No entanto FilmeFobia é daquela espécie inclassificável de documentário a que pertence também "Jogo de Cena" de Eduardo Coutinho. Cada um à sua maneira testam os limites do documentário – aquela idéia de que é possível “documentar” a realidade, entender um fenômeno e expô-lo ao público de maneira mais ou menos didática. Nesse sentido ele seria o oposto de ficção, por lidar diretamente com a realidade(ou reconstituí-la – ou algo assim- como fazem os History Channel da vida). Ora, tanto em FilmeFobia quanto em Xxxx (mas mais neste último) a referência é o real, com convém ao documentário, é dele que se parte para pensar em que consiste (ou se existe) essa fronteira que o separa do ficcional. No filme de Goifman(que na verdade tem Bernadet como mentor) pessoas com fobias são expostas a seus maiores temores. Ainda que existam especialistas explicando as possíveis origens das fobias (e as diferenças entre os termos fobia, medo e angústia) o foco está na imagem produzida, tanto é que Bernadet chama de “fracasso” um sujeito que, com medo de palhaços, apesar de traumatizado com a experiência, não tenha externado nada diante da câmera. A imagem, naquele caso, não tinha “verdade”, era vazia, estéril.
Falei deste filme como mero pretexto para retornar à discussão da imagem telejornalística. O jornalismo lida com fatos, por isso a câmera está lá para documentar o fato, para “provar” que aquilo existiu. Pois bem, ela pode até atestar a realidade(e isso é tema para outra postagem), mas quanto existe de verdade nela ? Quem quiser retorne ao que escrevi sobre a cobertura dos canais de TV sobre as tragédias causadas pela chuva e tire sua própria conclusão. Mas antes, se possível, assista a FilmeFobia.


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

ENCHENTES E SUAS IMAGENS - 2

Escrevi aqui sobre o tratamento dado pelo telejornalismo à cobertura dos estragos causados pela chuva (e,por extensão, de catástrofes em geral) e sua inferioridade das imagens em relação ao (bom) texto. Ninguém comentou, mas alguém certamente achou absurdo eu dizer que jornalistas teria muito a aprender com o cinema. Pois bem, um ótimo exemplo: No início de Cidadão Kane, passa um documentário sobre a vida milionário Charles Foster Kane, que havia morrido.O chefe acha aquilo burocrático, medíocre e diz para o repórter
“Não basta mostrar o que o homem fez, você tem de contar quem ele foi”. Daí, todo mundo sabe, ele sai à cata do significado da última palavra dita por Kane, Rosebud, e com isso nasce um dos maiores filmes de todos os tempos. Não basta mostrar uma pessoa chorando num velório(isso é meramente descritivo), sentiremos pouco mais do que uma breve indignação. Sentimento só virá se soubermos quem morreu, ou, ainda mais, quem é aquele que chora. Por isso o texto da Folha deu um banho(com perdão do trocadilho infame)em todos os telejornais.

CORREÇÃO

Anunciei aqui que “Stavsky” era o último filme do ciclo Alan Resnais no Espaço Unibanco Augusta. Errei. Esta semana passa “Meu Tio da América”, filme de 1980 com Gérard Depardieu.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O TRISTE FIM DO PEGADOR


Anteontem (31/01) o programa “Domingo Legal” do SBT, comandado por Celso Portiolli, teve seu dia de “Pânico na TV” ao trazer ao palco o jovem Rodrigo Ferraz, “famoso” por seus vídeos no YouTube em que aparece exibindo os músculos, dançando e se dizendo “pegador” de mulheres. Os vídeos , que também foram exibidos, são de um ridículo a toda prova, com Rodrigo “ensinando” o internauta a ficar musculoso com exercícios que mais parecem a tal nova febre baiana, a dança do rebolation bem como executando uma performance bizarra em que faz seu peitoral anormalmente grande tremer como se estivesse sob eletrochoques. Isso sem contar o “rap” absurdo que ele canta enquanto az tudo isso.
Pois bem, no palco o que era estranho ficou pior pois deu para ver claramente que o rapaz não só colocou um implante de silicone no peito como também uma monstruosa prótese no trapézio(o músculo logo acima dos ombros).Num coquetel surreal de fazer inveja a Salvador Dalí ,André Breton e Luis Buñuel juntos, Rodrigo chegou com panca de galã, mexendo com as meninas do auditório e sob a justificativa de que ia explicar uma notícia de um site que dava conta de que ele tinha morrido(?!), como afirmava também um outro vídeo, suposta homenagem póstuma feita por colegas. “Eu não morri, eu estou aqui” foi a que se resumiu a explicação de Rodrigo. O que se seguiu foi um linchamento, com Portiolli dando oportunidade de Rodrigo se expôr mais e mais ao ridículo, como cantar um rap para o qual ele provavelmente não foi avisado que cantaria. Ao tentar o Freestyle(rima improvisada), ele ficou várias vezes calado, com a música tocando.
Ora, não é preciso ter nenhum conhecimento de psicanálise para saber que este rapaz sofre de alguma patologia séria. Pela maneira como deformou seu corpo na busca de um ideal de virilidade e beleza, pela insistente e quase histérica auto-afirmação (a história “eu sou pegador”) bem como pela história de fingir a própria morte, arrisco dizer, aponta para uma pessoa com sérios problemas afetivos, sexuais ou que sofreu ou sofre de forte rejeição e que busca ,a todo custo, provar algo para si mesmo, talvez que ele é desejado e desejável.E, nessas, se destrói.
Rodrigo Ferraz é só um filho coxo e produto defeituoso da geração Orkut, que pode construir a imagem que quiser para si, da sociedade do marketing, que crê que mudando a embalagem não é necessário mudar o produto, do mundo do marketeiro, que faz com que acreditemos na mudança de uma pessoa através da transformação do visual ou do banho de loja (Wanessa Camargo é só o exemplo mais recente).
Um excelente tratado sobre isso é o filme “Falsa Loura”, de Carlos Raichembach, sobre o qual já escrevi bastante quando tive inclusive a felicidade de receber por aqui uma visita do ator João Bourbonnais.
Voltando a Rodrigo,é o caso de perguntar se, ao invés de fazer uma fanfarra para entregar uma casa de luxo, o SBT não estaria disposto a pagar um tratamento para o rapaz. Quer dizer, sem fazer disso um reality show.