domingo, 27 de julho de 2008

MIRZA, DE EUGÊNIO COLONNESE, ERA UM DRÁCULA "TROPICALISTA"


Quem tem mais de 30 anos provavelmente já leu histórias em quadrinhos de terror e, se as leu, a possibilidade de uma delas ter sido estrelada por uma bela morena de corpo sedutor e dentes afiados é grande. Mirza, a mulher Vampiro, foi criada pelo desenhista italiano radicado no Brasil Eugênio Colonnese em 1967 (antes da prima rica Vampirella, é bom que se diga) e seguiu sendo publicada, com breves interrupções, por mais de 20 anos, um feito extraordinário para o eternamente turbulento mercado editorial brasileiro.
Hoje a personagem amarga injusto esquecimento, que começou com o desaparecimento dos quadrinhos produzidos por brasileiros das bancas de jornais, exceção feita às produções de Maurício de Souza. Não migrou para o cinema, não chamou a atenção de artistas, nem ganhou menões na tv. Não se tornou "pop", enfim. O limbo em que mergulhou a personagem (que teve suas histórias republicadas em 2001 pela Escala e só este ano uma edição de histórias que permaneciam inéditas pela editora Mithos ) é lamentável não porque estas fossem muito boas (nem sempre eram) nem mesmo pelos desenhos de Colonnese, estes sim invariavelmente excelentes. Mas porque, enquanto foram publicados quadrinhos de terror produzidos por autores nacionais, esta foi uma das raras criações realmente originais a surgir.
As histórias de Mirza eram notáveis por misturar, sem nenhum pressuposto teórico ou coerência de qualquer tipo, a tradição do terror anglo-americano (que nossos autores tanto copiavam) com algo de propriamente brasileiro.Mas que algo é esse?
Vejamos: Mirza é na verdade a aristocrata Mirela Zamanova, nascida na Cracóvia (só para não dizer Transilvânia) e filha de um poderoso conde dono de um soturno castelo, em cujas redondezas vemos árvores ressequidas e revoadas constantes de morcegos. Ela tem também um ajudante corcunda, maligno e puxa-saco que se traja exatamente como os mordomos ingleses que vemos nos filmes.Mais típico, impossível.
Por outro lado percebe-se uma esculhambação geral com outros elementos das histórias vampirescas , uma esculhambação que não tem nenhuma intenção de ser humorística, e que, não sendo paródia, se configura como subversão pura. Que outra coisa dizer de uma história que mostra Mirza de biquíni se bronzeando em plena praia de Ipanema? Um dos elementos mais caros à mitologia dos vampiros, todos sabemos, é a aversão destes seres ao sol. E qual o motivo disso ter sido simplesmente descartado nas histórias, sem merecer sequer uma justificativa? É esse algo de propriamente brasileiro, que nunca conseguiria conceber uma bela mulher cuja existência ficasse oculta aos olhos de todos, que não pudesse ser livremente admirada. É o gosto pelo corpo e não repulsão a ele. Mirza, então, nada tem em comum com o vampiro típico, cuja pele é pálida como a de um defunto, muito menos com uma mulher do leste europeu, o que é quase a mesma coisa, diga-se. E nunca, nunca mesmo se viu Mirza dormindo num caixão, rodeada pela terra de seu país natal. Seu criador não a via (e nem seus leitores) como uma morta-viva, como um aborto, uma subversão da Criação mas sim como uma força sexualmente agressiva, impossível de ser contida. Uma pulsão. Daí o gosto pelo Sol, pela praia, por histórias passadas muito mais em hotéis de luxo do que em becos escuros ou castelos sombrios.No fim das contas, não dá para dizer que Mirza fosse um personagem caracteristicamente brasileiro, ela não trazia em si nem a ambigüidade de caráter de um exú (como ocorre,por exemplo, com o Zé do Caixão),não tinha nenhum traço “macunaímico”, nem mesmo espelhava a cordialidade nas relações de poder. Seu valor estava justamente neste caldeirão que ferveu tradição, inovação e elementos culturais diversos sem reverência por nenhum deles.

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