quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

GÊNESIS






O crítico da Folha São Paulo Ricardo Calil, ao falar de “Sherlock Holmes”, de Guy Ritchie, disse que “um filme não pode ser julgado por sua proposta, e sim pela maneira com que a desenvolve”. Tomo a frase emprestada para tratar de “Gênesis”, de Robert Crumb, versão em quadrinhos do livro bíblico que parece ter decepcionado muitos dos fãs desta forma de arte. Não sem razão, afinal quando foi anunciado que o papa das HQs undergrounds e ícone da contracultura faria sua própria versão do livro do Gênesis se podia esperar de tudo, menos uma transcrição literal do texto bíblico, capítulo por capítulo, versículo por versículo. Ora, este é o sujeito que nos anos 1960 não se importava em desenhar animais fofinhos estuprando e consumindo drogas, para o horror de Deus e o mundo !
A Conrad, responsável pelo lançamento no Brasil (que aconteceu simultaneamente ao resto do mundo) botou lenha na fogueira colocando em volta do livro uma tarja vermelha com desenho de Adão e Eva fazendo sexo e os dizeres “este livro contém descrições de cenas de nudez e violência conforme o texto original no qual é baseado”.
É por isso que recorro à frase de Calil, porque é a partir do modo como Crumb desenvolve sua proposta que devemos julgar o mérito de seu trabalho, não a partir de como esperávamos que ele fosse (uma esculhambação com o texto sagrado, talvez). Sendo assim, a referência que devemos buscar está menos nos quadrinhos e mais na tradição pictórica ocidental, tanto as iluminuras medievais como as gravuras de Dürer(séc XVI) e Rembrandt (séc XVII).
As iluminuras eram ilustrações de versículos bíblicos que ornavam o livro sagrado primando pelo concisão e clareza, requisitos essenciais para se traduzir o texto numa única imagem. E é disso que se trata esta obra, afinal a cada versículo ou dois corresponde uma imagem num quadrinho. As primeiras sete páginas, que vão da criação do mundo à tentação de Eva, são de uma clareza tão absurda que o texto chega a se tornar dispensável. Daí por diante vemos que Crumb dedicou-se a uma tarefa arriscada, a de ombrear-se com gigantes da pintura na representação de passagens bíblicas. O quadrinista faz bonito, principalmente quando interpreta o texto, criando expressões perfeitamente críveis para os personagens. Do choro de Eva ao ser expulsa do jardim do Éden à cara atordoada de Noé diante da tarefa absurda imposta por Deus ou ainda o olhar insano de um Abraão prestes a matar o próprio filho, tudo é de altíssimo nível. São pouquíssimas as vezes em que o quadrinista cai na tentação de voltar ao seu estilo satírico e exagerado.
Robert Crumb parece ter assimilado Rembrandt , principalmente a gravura de 1656 “Cristo pregando” que mostra Jesus cercado de discípulos onde, apesar da entrada de luz estar atrás deles todos, a claridade emana de Cristo. Vemos esse recurso usado quase sempre que Deus aparece pessoalmente diante de cada personagem. Aliás, a ligação entre as gravuras e seu estilo é grande, afinal ele trabalha em preto-e-branco e com luz e sombra definidas pela quantidade de traços sobrepostos(as hachuras), algo em que Dürer era mestre.
Crumb também empreendeu um cuidadoso trabalho de reconstituição histórica, expresso discretamente como quando vemos Noé usar baldes de betume para impermeabilizar a madeira de sua arca. Ou seja, cada quadrinho deve ser apreciado lentamente, como se estivéssemos diante de uma improvável iluminura a um só tempo gótica, barroca e contemporânea onde, além da ação principal (bastante clara,com convém) temos ações de fundo, pessoas que não sabemos quem são mas que parecem absurdamente vivas. E aí que entra a interpretação de Crumb, sua visão do texto afinal este é um trabalho de dupla interpretação, em primeiro lugar textual (e este Gênesis tem notas que explicam suas opções, inclusive na tradução) e, em seguida, deste texto em imagens. No momento em que Abraão pede que a mulher Sara que faça sexo com os egípcios (para que eles não o matem- passagem polêmica que toma boa parte do espaço reservado às notas da edição), podemos vê-la séria e forte,porém com uma lágrima cortando-lhe a face. Nesta hora, em que as decisões do artista dependem só dele, é que vemos que Crumb está a altura da tarefa que chamou para si.
E, sim, a editora estava certa ao falar de nudez e violência (sem contar incesto, traição, etc), afinal disso a Bíblia está lotada. Só não culpem o criador (de Fritz, the Cat) pelo que está lá.


* Ilustrada de 08 de janeiro de 2010
**Texto produzido originalmente para o site HQ Maniacs

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