terça-feira, 9 de setembro de 2008

O MISTÉRIO DO SAMBA – POR ONDE ANDAM OS SAMBISTAS?

O Mistério do Samba, de Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda é um filme imperdível por mais de um motivo; não só por ser belíssimo, mas também por seu caráter documental, de raridade mesmo.
A memória do brasileiro, diz a sabedoria popular, é curta. E é para corrigir este problema, que este documentário serve.
Artistas brilhantes e esquecidos existem em qualquer gênero musical de qualquer país. Muita gente boa, por um motivo ou por outro acabou jogada para escanteio ou recebendo um reconhecimento tardio. Pode-se dizer isso de Ike Turner, que pouca gente sabe, foi autor de “Rocket 88”, primeira composição de rock and roll, mas que ficou famoso pela violenta convivência com a ex-mulher, Tina. King Keppard, maior músico de Jazz de seu tempo, que poderia ter se tornado o primeiro artista do gênero a ser gravado (o que não o fez por medo de que outros músicos aprendessem a tocar como ele após ouvirem o disco). Aqui, entre tantos outros exemplos, poderíamos citar Johny Alf, precursor (e transcendente, nas palavras de Ed Motta) da bossa nova que acabou ofuscado pelo gênero que poderia tê-lo consagrado. Pode acontecer até com quase todos os grandes nomes de um gênero musical. Foi assim com um a soul music, que “morreu” ao surgirem seus desdobramentos, o funk e a disco, até renascer nas gargantas de Joss Stone, Amy Winehouse e Duffy. O ocaso destes músicos, compositores e cantores é mostrado no filme “Only The Strong Survive”, de que já falamos aqui neste blog (no post sobre Isaac Hayes).
No entanto, quando isso acontece com todo um gênero musical vivo e pulsante, podemos dizer que os motivos são outros e bem mais mesquinhos.
Não foi só a ganância das gravadoras multinacionais que afastou boa parte dos sambistas do grande público, mas há um sistemático isolamento das velhas-guardas que acontece dentro das próprias Escolas de Samba, que em certo momento passaram a privilegiar o espetáculo em detrimento das composições. Disso padeceu Jamelão, que morreu tendo sua carreira como cantor de sambas-canção e grande intérprete de Lupicínio Rodrigues quase completamente esquecida.
O grande público hoje ignora, não um ou outro, mas quase todos os grandes nomes do samba. E, infelizmente, iniciativas como esta O Mistério do Samba são raras. Para uma comparação, vale ver quantos documentários sobre jazz estão disponíveis nas lojas de DVDs. De alguns oportunistas, como “Lois Armstrong – um retrato íntimo do pai do Jazz” (que erra já no título, ao atribuir uma paternidade que não é dele) de John Akomfra, até o magnífico “Jazz”, de Ken Burns com mais de 12 horas de duração, há uma oferta enorme. Tivemos, é verdade, Cartola – Música para os olhos, Paulinho da Viola- Meu tempo é hoje e a ficção Noel, o poeta da Vila . É pouco. A TV, os jornais e as revistas também só raramente se lembram do samba, muito menos de seus ídolos.
Agora, sobre o filme propriamente: acompanhamos durante os pouco mais de 70 minutos de duração, a cantora Marisa Monte, (por vezes acompanhada por Paulinho da Viola e Zeca Pagodinho) na busca por canções nunca gravadas de grandes compositores da Portela. Nessa jornada, que durou aproximadamente dez anos e gerou, além deste documentário, três álbuns, nos deparamos com entrevistas históricas como as primeiras de Argemiro Patrocínio e Seu Jair do Cavaquinho. Históricas porque, por iniciativa deste projeto, eles gravaram seus primeiros discos somente em 2002, respectivamente, com 80 e 79 anos (ambos morreram durante a produção do filme, Argemiro em 2003 e Seu Jair três anos depois).
É absolutamente encantador de se ver (e ouvir) como o samba é vivo, como continua passando de geração a geração e como pulsa nas comunidades, mesmo que distante da mídia.
Das muitas histórias deliciosas, veremos Seu Jair contar que saiu de casa às broncas da esposa, que se irritava com o fato dele ir para o samba, onde estaria rodeado de mulheres. Ao retornar, percebeu que estava trancado para o lado de fora. Só com muita conversa é que conseguiu entrar em casa, onde, na maior cara de pau, apresentou à companheira o samba “Voltei”, criado durante a noitada:

Voltei, voltei
Já chegou quem lhe socorre
Já lhe avisei
Que por falta de amor
Você não morre
Voltei pra matar os desejos seus
Pra não me esquecer a quem não me esqueceu
Lhe adoro tanto criatura
E o nosso amor ainda não morreu


Já Argemiro Patrocínio canta “Solidão”, de versos rascantes como: “É dor, angústia e sofrimento/ O tédio é um eterno tormento/Assim é a solidão” para logo em seguida, sobre o mesmo tema disparar que “pelo menos pra isso a mulher serve, pra brigar. Tem vezes que isso faz falta”.
Com se tudo isso não bastasse, vale ainda dizer que será literalmente impossível segurar os aplausos após as apresentações musicais (feitas em botequins e barracões), como se elas estivessem acontecendo ali mesmo no cinema.
É bom corrigir, O Mistério do Samba não é só imperdível, é obrigatório.

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Podemos ouvir samba tradicional aqui no ABC com o projeto Samba de Terreiro de Mauá, que inclusive já trouxe para uma homenagem, outro compositor esquecido, o octagenário Xangô da Mangueira. É um trabalho de resgate não só de sambas antigos, (semelhante ao que faz o Berço do Samba de São Mateus), mas também de uma tradição, a de tocar numa roda em volta de uma mesa, emendado um samba com o outro e, por vezes, contando histórias entre eles. Em cada apresentação há também exposição de capas de discos históricos e raros, livros, pinturas outras coisas ligadas ao universo do samba. Neste sábado (dia 13) eles estarão no Bar SET, avenida Padre Anchieta 230 em Santo André, por volta das 21 h.
Quem quiser conhecer um pouco mais pode visitar: http://www.terreirodemaua.blogspot.com/

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No caso da memória da nossa cultura musical, as majors (grandes gravadoras multinacionais) fizeram de tudo para encurtá-la ainda mais. Jogaram carreiras num buraco tão profundo que acabaram tragadas, elas também, para dentro dele. Num dado momento, trataram de fazer duas coisas: investir em modismos, com criação (promoção) de artistas em linha de produção (foi assim com o sertanejo, depois com o axé e o pagode), sempre copiando ao de maior sucesso no gênero. Para isso, viciaram as rádios a só tocarem músicas mediante o famigerado jabá (valor pago pela gravadora por música executada ou incluída nas “mais pedidas do dia”. E trataram também de desmontar a cultura do álbum musical, ao investir na venda de coletâneas com as “melhores”músicas de cada artista e nos “Ao Vivo”. Não havia a necessidade de se investir na gravação de um novo disco e o lucro, conseqüentemente, era bem maior. Com interesse concentrado num único gênero musical por temporada e fazendo o possível para despersonaliza-lo ao máximo (desagradando ao menor número possível de pessoas) gente muito boa foi sendo esquecida, as grandes composições foram rareando e o gosto popular, se degradando. Chegou a pirataria dos CDs e o MP3 e as gravadoras, sem nomes consistentes, sem a cultura do disco físico (que valorizava não só a música, ma a capa e o encarte) que eles trataram de destruir , desmoronaram. Com elas, foram suas lacaias, as rádios FM, que agora estão nas mãos de outras empresas (Mitsubishi Motors, Oi, Sul América).

3 comentários:

Mário disse...

Tribalixos a parte, Marisa Monte ganha uns bons pontinhos no céu com esse projeto e com o documentário em si. Coisa fina de primeira mesmo , samba feito por quem ja viu tudo e sente de tudo com muito mais dor.

Daniel Luppi disse...

Parabens pelos textos. Alto nível na escrita e na escolha dos temas.
Só desconhecia esse seu lado "sambista". Abraços

Anônimo disse...

Com certo atraso, mas blogo adicionado aos favoritos.

Abç,

Zidane