quinta-feira, 18 de setembro de 2008

NELSON RODRIGUES E O LEMA " O QUE FAZ VOCÊ FELIZ?"

O conto O Pastelzinho, de Nelson Rodrigues, que pode ser lido no livro “A Coroa de Orquídeas e outros contos de A Vida como ela É” (Companhia das Letras) é um dos cinco encenados pela Cia Paulista de Artes na peça As Noivas de Nelson, que tem direção e adaptação de Marco Antônio Braz. Segue um trecho:

Muito carioca, estabanado, Sérgio mudava diante da noiva assim doce e assim macia. Sem querer, ele a tratava com relativa e involuntária cerimônia. O chamado “beijo bem molhado”era a máxima liberdade formal que se permitia. Mas, na véspera do casamento, ela o chamou de lado.No seu jeito manso, começou:
- Vou lhe pedir um favor, meu filho.
Abriu-se:
- Pois não!
E ela:
- Eu não queria que você falasse mais em “beijo molhado”. Acho tão sem poesia!
Pela primeira vez, Sérgio quis resistir:
- Mas,meu bem,escuta cá- por quê?
Explicou:
- É o seguinte: - quando você fala assim eu penso logo em saliva.
O outro animou-se:
-Mas é por isso mesmo!A graça do beijo está, justamente, na saliva meu anjo.-E insistia, já inspirado:-Na mistura de saliva.
Dalva encerrou a discussão com sua doçura irredutível:
- Eu não penso assim.
Sérgio transigiu, imediatamente:
- Está bem, coração. Todo meu interesse é de te agradar
.


Acerca dos personagens de Nelson Rodrigues, Ruy Castro diz na apresentação do livro “O Melhor do Romance, Contos e Crônicas” (Companhia das Letras/Folha de São Paulo) que eles são “homens de bem, senhoras honestas e virgens de catorze anos, roídos por fantasias inconfessáveis”.
É interessante notar o quanto isso mudou, o quanto a sexualidade reprimida dos tempos de Nelson (e que levava seus personagens a situações constrangedoras e de desespero) hoje é escancarada. Basta dizer que qualquer celebridade de quinta categoria hoje faz um filme pornográfico e vai a programas de TV divulgar seu “trabalho”. Isso não pode ser explicado apenas pelo que se chamaria de “evolução dos costumes”, mas sim por uma cultura que privilegia o prazer e a felicidade do indivíduo acima de tudo. A evolução ocorreu sim e uma peça como Beijo no Asfalto, em tempos de Parada Gay, soa até estranha. E se um dia já foi considerada valorosa e “decente” a mulher que permanecia virgem até o momento do casamento, hoje ela é motivo de, no mínimo, estranheza. Mas há mais do que apenas a evolução da sexualidade rumo a uma maior liberdade.
Hoje a obrigação é ser feliz, e o que conta mesmo é o Indivíduo, e não há porque se colocar entraves à satisfação de nossos desejos (sexuais, de consumo ou de outra ordem). Daí muito daquilo que antes era moralidade ser hoje tabu, (por exemplo, a virgindade).
A publicidade o tempo todo nos mostra imagens de pessoas felizes (O que faz você feliz? -nos pergunta um anúncio da rede Pão de Açúcar) e que assumem uma postura vitoriosa diante da vida. Ficamos assim numa obrigação de sermos “vencedores” e “felizes” (passando por cima de tudo quanto de abstração há nestas palavras). Se não nos encaramos nem como vitoriosos nem como felizes (e se todo sofrimento é inaceitável, toda dor, um defeito) temos sempre à mão nossas soluções mágicas, que já não são mais os patuás benzidos ou as fitinhas trazidas de alguma romaria, mas sim produtos de uma sociedade que mesmo quando é religiosa, se mostra “científica” e, quando se diz “científica”, é quase mística.
Temos desde as pílulas do amor e as da felicidade a inúmeros livros de auto-ajuda que nos “ensinam” a obter “sucesso” e ter uma vida “vitoriosa”, curiosamente as mesmas promessas feitas por tele-evangelistas, padres cantores e todo um sem número de crenças religiosas, que, ao contrário do que vemos nas peças de Nelson, buscam não mais recalcar, mas exacerbar. Se, por um lado, seus problemas podem ser resolvidos engolindo alguma pílula, eles também podem desaparecer apenas assumindo a atitude “correta” (seja ela o “pensamento positivo” dos livros ou a afirmação da fé, ou mesmo algum tipo de doação)
A transformação da aparência é apenas outra face da solução mágica. Não é de surpreender a busca desesperada pela operação plástica ou a crença (literalmente) no poder de um banho de loja. Acredita-se, do mesmo modo, que mudando o “visual” muda-se a personalidade – os livros de auto-ajuda falam em “mudança de atitude”; o “banho de loja” que muda para melhor a vida de uma pessoa é comum em filmes, principalmente as comédias românticas e é apresentado como o primeiro passo para a superação dos obstáculos apresentados ao protagonista( a conquista do grande amor , o sucesso no emprego, etc). Essa crença na personalidade “ideal” conseguida através da construção da identidade (maquiagem da aparência) está no cerne da existência, por exemplo, dos sites de relacionamento e boa parte da comunicação via internet. É no universo virtual que se transforma naquilo que se gostaria de ser e assim se apresenta aos outros.
O que a idéia de soluções mágicas traz consigo é que tudo está ao seu alcance (o que faz você feliz?) , basta assumir a atitude correta. Portanto o “fracasso” ou a frustração gera toda uma nova gama de males, como síndrome do pânico, consumismo, ninfomania e depressão (vale notar que Freud se referia apenas à melancolia).
É o mal-estar da pós-modenidade.

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não há nada de especificamente psicanalítico na idéia de depressão. Na verdade,pode-se afirmar que a depressão,na forma como a concebemos hoje, é produto tanto da influência sutil da indústria farmacêutica no modo como encaramos nossa vida emoional quanto da medicina psicológica. Os fabricantes de antidepressivos fazem questão de que a aflição seja entendida como depressão para criar a necessidade dos seus produtos” diz Jeremy Holmes no pocket book “Depressão” (Ediouro/Duetto).

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Que as drogas tenham se tornado uma epidemia não surpreende. Elas são a maneira mais rápida e fácil de se obter prazer e esquecer frustrações.

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Não passa nem perto das intenções desse texto dizer que a obra de Nelson Rodrigues está ultrapassada. As figuras de filhos dependentes, mães castradoras, sogras dominadoras e toda sorte de tipos urbanos estão vivíssimos. E o repórter justiceiro e oportunista de Beijo no Asfalto só trocou os periódicos sensacionalistas pela TV.

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A peça As Noivas de Nelson está em cartaz no Teatro Arthur Azevedo (av.Paes de Barros,955-Mooca) até o dia 28 deste mês que é também quando sai de cartaz Senhora dos Afogados, dirigida pelo gigante Antunes Filho, que está no Sesc Consolação (r.Dr.Vila Nova,245- região central).

Um comentário:

Daniel Luppi disse...

"O que faz vc feliz?"?!?!?!!?

"Um homem com uma dor é muito mais elegante", já diziam Leminski e Itamar