Nossa sociedade é de uma hipocrisia assustadora: inúmeras inovações tecnológicas (a escada rolante e o controle remoto) nos prometem conforto, mas terminam por reduzir drasticamente nossa atividade física total no final do dia. Nos acelera o ritmo de vida e, em nome da conveniência nos oferece o fast-food entupido de gorduras literalmente venenosas (as trans) que, aliás, só com pesada pressão da opinião pública foram ou diminuídas ou informadas ao consumidor de sua existência. E por fast-food entenda-se não só a comida de shopping, mas também aquela coxinha ou pastel que substituem a refeição na correria do dia-a-dia.
A publicidade exclui o gordo de anúncios onde se ofereçam lanches, refrigerantes e cervejas. Neste mundo irreal, todos são não só magros, como atléticos.
O único retrato sem maquiagens dessa realidade cínica e cruel acabou vindo de uma ficção, a maravilhosa animação Wall-E, (ainda em cartaz e na qual deteremos com mais profundidade numa próxima oportunidade). Lá vemos um anúncio de tv de uma empresa, BnL(prováveis siglas para Buy and Live – compre e viva, corrupção da máxima cartesiana do “penso, logo existo”) que promete disponibilizar todo tipo de conforto (espécie de “tudo ao seu alcance”) em um misto de shopping center e condomínio de luxo no espaço. Alguns séculos depois, é mostrada a aterradora realidade: os seres humanos são como animais obesos de laboratórios que mal podem se mover sem a ajuda de cadeiras flutuantes. O corpo, gigantesco, é desproporcional aos membros atrofiados. Desnudada a publicidade, vemos a realidade de todos nós.
Que o ideal de beleza seja hoje a magreza, não é de se surpreender, uma vez que é preciso sobretudo tempo para se manter, ou magro ou tornar-se atlético. Gordura já foi sinal de beleza quando a população era composta por uma maioria absoluta de famintos. Das “Três Graças” de Rubens, no séc17 às várias “Banhistas” de Renoir dois séculos depois, as pinturas nos mostram exatamente isso. Comer bem (muito) já foi um privilégio e fazer exercício físico, um indicativo de trabalho braçal, portanto,de pobreza. Era preciso tempo de sobra para poder engordar.
Engordamos com facilidade, mas não só não admitimos isso como odiamos essa realidade. É no cinema e na TV que declaramos isso. Ao gordo é reservado quase sempre papéis cômicos (o tipo atrapalhado simpático), bizarros (normalmente um porcalhão ou um tipo esquisito) e, às vezes, vilanescos. Se é para ser um herói, que o seja um do tipo atrapalhado, que atinge seu objetivo mais por uma conjunção de fatores (tudo conspira a seu favor), como, por exemplo, num filme do tipo de Kung-Fofo. No limite, temos a horrenda versão de Eddie Murphy para “Professor Aloprado” (cujo original, de Jerry Lewis, será tema de um texto em breve), onde uma família gorda (todos interpretados pelo próprio Murphy) senta-se à mesa como verdadeiros animais, chafurdando a comida, arrotando, peidando, cutucando o nariz e se divertindo muito com isso. Ser gordo é ser nojento, grosseiro e imbecil, nos diz o filme.
“Hoje Acordei Gorda” é um monólogo musical engraçadíssimo baseado no livro de mesmo nome escrito por Stella Florence, adaptado pela dramaturga Adélia Nicolete e cujos vários personagens são interpretados por André di Perolli sob a direção de Daniele Pimenta.
A peça é, em mais de um sentido, uma experiência singular. Primeiro por que trata da questão da obesidade sem julgamentos de valor, sem uma mensagem edificante-mala (do tipo ‘vamos nos aceitar como somos’) e o, melhor, sem ridicularizar as pessoas gordas. Está tudo lá, da crítica à sociedade que oferece gorduras e depois produtos emagrecedores à neurose da dieta. Mas o que de mais interessante ela oferece é nos aproximar da vida dos gordinhos com humor (mas não com escárnio), e mostrá-los não através de abstrações ridículas (com os exemplos já citados), mas como pessoas que todos conhecemos.
Veremos lá a Mama Italiana com suas comidas tão deliciosas quanto gordurosas, a mulher que, aos tantos anos de casamento, ouve do marido um “tu tá gorda” e se vinga preparando para ele comidas irresistíveis (e extremamente calóricas), ou ainda a garota que, após levar um fora, entra numa dieta severa a fim de aparecer “gostosa” e com ar de superioridade na frente do ex. Feito isso, comemora matando uma lata de leite condensado no bico. Há ainda várias outras personagens, todas muito engraçadas, mas o destaque acaba ficando com as músicas.Só este trecho já dá uma boa idéia:
Croissant, fondant, bombom/Petit four, fricassé, filé mignon/ Baguete, croquete, pardon!/ Engordar em francês é “très” bom!
Para completar o “combo”, há ainda divertidas citações a Psicose, Iluminado e Star Wars.Vale dizer que os gordinhos pagam meia-entrada, concedida após pesagem numa hilária balança em frente à bilheteria. Quem quiser assistir terá de queimar algumas calorias e correr, pois ela fica em cartaz só até o próximo final de semana (sábado e domingo, às 20h) no Teatro Elis Regina (R. João Firmino, nº 900) em São Bernardo do Campo. A entrada inteira custa R$ 20,00. Informações pelo telefone: 4351-3479
!!!!!!
Quem quer que tenha visto filme, novela ou programa humorístico onde haja um gordo fazendo papel ridículo, estará ajudando muito este blog se disser qual foi.
!!!!!!
Quem quer que tenha visto filme, novela ou programa humorístico onde haja um gordo fazendo papel ridículo, estará ajudando muito este blog se disser qual foi.
!!!!!!
Pelo que ouvi dizer,a animação Kung-Fu Panda não compartilha destes estereótipos manjados. Estou certo? Alguém assistiu?
2 comentários:
quer mesmo que eu liste os gordos nao ridicularizados na TV? olha vou ficar devendo...
Uau!
Grande comentário e que aula!
Que bom que você conseguiu absorver a essência do espetáculo: divertir sem ridicularizar, advertir sem ser piegas e mostrar a realidade sem não-incomodar.
Como diz a ultima personagem do espetáculo: "ser gordo ou magro tem suas dores e suas delícias, e hoje eu só quero aproveitar as coisas boas".
Um gigantesco e rechonchudo abraço
André di Peroli
ator do espetáculo Hoje Acordei GOrda
Postar um comentário